terça-feira, 10 de abril de 2012

Narrando estranhos

Ele levava uma vida digna. Para ser sincero, uma das vidas mais felizes que conheci, pois exercia da consciência plena do mundo exatamente como o era, cheio de minúcias problemáticas e degradação dos seres humanos, mas já tinha a sua modesta solução: a menina das tintas. Ela pintava tudo o que os olhos dele enxergavam, um universo inteiro na visão de uma jovem e sonhadora artista em pleno século XXI. Pintava suas bochechas quando queria ser índia e conhecer o passado que não lhe pertencia, pintava sua boca carnuda – se existem os olhos de ressaca da Capitu, a sua boca com certeza era a “boca de ressaca”: geralmente levemente molhada pela saliva e, quando seca, ficava vermelha e com aspecto assado, representando o inverno salgado depois das noites de verão -, pintava os dias de sol nas janelas e retratava como ninguém as suas melancolias em desenhos estilizados, com um toque de densidade e psicodelismo. Ela andava de calças largas, com os cabelos curtos bagunçados (quase sempre presos em um desconectado e apressado rabinho-de-cavalo), usava argolas pequenas de madeira escura nas orelhas e muitas pulseiras coloridas nos dois pulsos (sendo que todos os acessórios eram simplórios, provavelmente comprados no centro histórico da cidade, onde os indiozinhos, artesanalmente, moldavam a madeira e encaixavam as pedrinhas). Era naturalmente sexy, de um jeito difícil de explicar, já que o conceito de sexy tem se corrompido com o advento das panicats e das mulheres frutas. Mas o fato é que o olhar era leve e, ao mesmo tempo, intenso, a boca, grande demais para ser conservada estática, comumente encontrava-se semiaberta, sem que ela tivesse alguma intenção (só não queria lutar contra a gravidade o tempo inteiro), e então, os dentes brancos apareciam quase que por engano e observá-los era como estar recolhendo para si um segredo de alma.

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